Praia Grande aka Folhas Soltas de um Diário Inexistente (II)

Eu e ela casámos em 1952, um mês e 4 dias depois de nos conhecermos na Praia Grande, num dia de Inverno que prometia uma enxurrada. Não sei o que nos atraiu naquela tarde, naquela praia, naquelas condições, mas fomos atirados um para o outro pelo vento manhoso da época que lhe levou o chapéu de abas largas para cima da minha pasta de couro. Ficou preso na fivela foi o que foi mas isso não explica nada. Ou explica tudo, nem sei. Se já soube também não sei. Esqueci-me de muito, quase tudo, do que ficou para trás. Depois disso cultivei o penteado criteriosamente para trás, depois disso ela emagreceu a ponto de lhe embaciar a pele – nem as 5 gravidezes a incharam por debaixo do vestido. Nasceram os Josés de enfiada, o Zé Manel, o Zé Tó, o Zé Maria, o Zé Francisco, o Zé Fernando e não tentámos mais. Mudámo-nos para quartos separados – nenhum de nós ficou com o que era o nosso e o silêncio instalou-se à mesa de jantar quando os pirralhos começaram a crescer e a preterir-nos aos cafés e cervejas na tasca da vila. Nunca falámos daquela tarde na Praia Grande, do chapéu de abas largas nem da minha pasta de couro. Ela nunca mais usou o chapéu, sinal, disse apenas, de um passado que ficara para trás. Nunca lhe cobrei as memórias que esperei dela e que nunca chegaram a ser futuro. Nem lhe cobrei o Zé Manel, gaiato loiro de olhos azuis esverdeados ao pé dos irmãos escuros como azeitonas – que o bairro dizia ter saído ao padeiro. Fosse o padeiro loiro e até tinha acreditado, isto antes da verdade brotar lúcida e dolorosa em forma de letra. Anos depois do casamento – ao qual só foram duas testemunhas que encontrámos no banco do jardim e precisavam de meia dúzia de escudos para cigarros (daí aceitarem o convite à vista das moedas) – descobri uma carta que ela nunca chegara a enviar. E que não era para mim, não era, óbvio que não era, ela nunca me escreveu. Na carta, sem remetente, li que um moço escuro como uma azeitona a tinha salvo de se afundar no mar da Praia Grande, a ela e à barriga, que em breve cresceria. Graças ao moço, continuava a carta, tinha escapado da morte no mar e da vergonha de ter sido largada pelo marinheiro, tão loiro, de olhos azuis esverdeados – que embarcara rumo a outros portos. Nunca lhe perdoei, nem ela a mim, ter aberto a carta. Nunca me perdoei não ter batido com a porta e abandonado aquela mulher que nunca foi minha na casa onde nunca fomos felizes – como o marinheiro. Mas afeiçoei-me ao garoto, o que fazer, ao meu primeiro José que nem era meu, e deixei-me estar, com o cabelo criteriosamente penteado para trás num quarto só meu, numa casa de todos e de ninguém.
...

‘Eu e ela, por diferentes razões, fomos sempre seres destituídos de liberdade, sempre fomos escravos acorrentados às grilhetas dos nossos enganos, dos nossos erros, dos nossos equívocos, das nossas verdades. Nunca desenvolvemos as capacidades necessárias à ‘liberdade de aquiescência’ enunciada por Adriano nas suas memórias descritas por Marguerite Yourcenar (... dispondo-me a considerar um exercício útil os meus anos de dependência, a minha sujeição perdia o que tinha de amargo ou mesmo de indigno. Escolhia o que tinha, obrigando-me apenas a tê-lo totalmente e a apreciá-lo o melhor possível. ...) e assim, sem essa capacidade de escolher o que tínhamos, e de lhe atribuir um valor estimável, nunca fomos capazes de nos aceitar um ao outro nem a nós próprios’.

5 comentários:

CNS disse...

Grande redondilha Marta. Só tu Marta. E a tua forma única de escrever o mundo ( hà quem lhe chame estórias)

MMS disse...

Obrigada, Cristina! :)
(Mesmo)

pbc disse...

Grato e surpreendido pela fantástica pontualidade do trio :)

Bem Haja tanta criatividade !
-desta vez foi ela a má da fita o que é uma inovação ;)-

Tens uma imaginação, um sentido de humor e uma forma de contar estórias sem dúvida cativantes.
Obrgd bj

Isabel J. disse...

GRANDE MARTA :D

Mt bom, como sempre e para não destoar...

:*

MMS disse...

Pedro: Como o desafio foi lançado por ti achei que merecias uma mulher má da fita :) Estou a brincar: não foi propositado, acho que nada na minha escrita é. As personagens sequestram os meus dedos e o mérito é delas, todo delas! Sou refém. :) Obrigada, ainda bem que gostaste :)

Isabel,
Obrigada :) A sério!!!