Folhas soltas de um diário inexistente (I I) - Desafio

Lembro-me do seu ar distante. Da ausência no metálico da voz. Lembro da dependência que ela tinha com a imagem. Com o que os outros pensavam dela. Com o que diziam. A minha mãe vivia dentro de uma personagem. Da pessoa que pensava que deveria ter sido. Olhava com desprezo para a minha pele morena. Para os traços rudes herdados de meu pai. Olhava com o azul aguado dos seus olhos desprovidos de afecto. Ficava sentada na sua cadeira de palha, fingindo que lia. Indiferente à minha vida, que corria desprendida noutra casa, dentro da nossa. A ultima vez que falamos foi dias antes da clandestinidade. Entrei na sala com o saco verde às costas. Ela ergueu os olhos. Pareces o infeliz do teu pai. Serás sempre um infeliz como o teu pai. Não lhe respondi. Entre nós havia apenas laços de silêncio. 

Eu e ela, por diferentes razões, fomos sempre seres destituídos de liberdade, sempre fomos escravos acorrentados às grilhetas dos nossos enganos, dos nossos erros, dos nossos equívocos, das nossas verdades. Nunca desenvolvemos as capacidades necessárias à ‘liberdade de aquiescência’ enunciada por Adriano nas suas memórias descritas por Marguerite Yourcenar (... dispondo-me a considerar um exercício útil os meus anos de dependência, a minha sujeição perdia o que tinha de amargo ou mesmo de indigno. Escolhia o que tinha, obrigando-me apenas a tê-lo totalmente e a apreciá-lo o melhor possível. ...) e assim, sem essa capacidade de escolher o que tínhamos, e de lhe atribuir um valor estimável, nunca fomos capazes de nos aceitar um ao outro nem a nós próprios.

6 comentários:

MMS disse...

Oh Cristina, e não é que também nos cruzámos no aspecto da mãe e do pai nos nossos textos depois da empreitada dos avós do desafio da Isabel? :)

É tão triste o teu texto. E é tão bom quando um texto me comove! Obrigada, Cristina!

Isabel J. disse...

Cristina, MT BOM :D

Quantos de nós, não ficam presos pelo que pensam os outros..

:*

CNS disse...

Isabel

Quantos, mas quantos e quantas vezes ;)

CNS disse...

Marta:

Já vi que sou a depressiva de serviço . :))))

Obrigada!

P.S Obrigada Isabel!!

pbc disse...

Diverti-me com essa concertação de publicações. Acertaram bem os relógios.

Sabes uma coisa curiosa. Este pequeno texto é tirado de outro maior e é sobre uma relação mãe e filho. Sensibilizou-me essa afinidade da tua abordagem.

quanto ao resto está lá a beleza com que derramas os sentimentos sobre as palavras e lhes dás o teu sabor.

Obrgd bj.

CNS disse...

Obrigada Pedro.