Folhas de um Diário Inexistente II - Início

Tive uma infância que pode ser considerada normal. Quando dei por mim, já adolescente, debatia-me com a questão da liberdade. Parecia-me sempre estar preso. Sem possibilidade de escolher. Fui para o curso para seguir as pegadas do meu pai. Era católico sem ter escolhido sê-lo. Vestia o que me compravam. Somente ao almoço escolhia entre carne ou peixe. E se escolhesse salada saía mais caro.


A vida continuou. Depressa chegou o primeiro emprego e a escravidão diária da rotina.


Já com alguns anos de vida laboral, chegou mais um Natal. Como sempre, fomos todos convidados para a dita festa. E lá estava eu, preso, naquele mundo que não entendia. Naquele espaço, com aquelas pessoas, daquele emprego. Afastei-me. Fui para o canto mais recôndito da sala. No canto ninguém me olhava de trás. No canto estava seguro.
De relance vi a Valéria. Encostada a um canto, tão perdida quanto eu. Não me recordo de ter ido ao seu encontro. Só sei que nas horas seguintes, pela primeira vez na minha vida, socializei.Socializei com alguém tão marginalizado como eu. Partilhámos estórias e cruzes. Eu e ela estávamos presos.


Eu e ela, por diferentes razões, fomos sempre seres destituídos de liberdade, sempre fomos escravos acorrentados às grilhetas dos nossos enganos, dos nossos erros, dos nossos equívocos, das nossas verdades. Nunca desenvolvemos as capacidades necessárias à ‘liberdade de aquiescência’ enunciada por Adriano nas suas memórias descritas por Marguerite Yourcenar (... dispondo-me a considerar um exercício útil os meus anos de dependência, a minha sujeição perdia o que tinha de amargo ou mesmo de indigno. Escolhia o que tinha, obrigando-me apenas a tê-lo totalmente e a apreciá-lo o melhor possível. ...) e assim, sem essa capacidade de escolher o que tínhamos, e de lhe atribuir um valor estimável, nunca fomos capazes de nos aceitar um ao outro nem a nós próprios.

4 comentários:

pbc disse...

Olá Isabel

Adorei a pontualidade das 3 ! :)

Gostei da ideia. Às vezes a vida é um rio cuja corrente nos arrasta para lugares que não escolhemos. E é tão difícil lutar contra a corrente.
Bj e obgd

CNS disse...

Ai a Valeria...Que nada tinha de redentora. :)

MMS disse...

Gosto muito da forma como escreves as escolhas. A escolha do almoço e da salada, que ele até pediria se não fosse mais cara. A genética e o meio social influenciam-nos, sim, mas há escolhas que mesmo assim não arriscamos. passos que não damos. medos que nos prendem. Boa, Isabel! :)

Isabel J. disse...

Obrigadaaa a todos :D

E que os nossos medos sirvam como catapultas e não como algemas!

:*

Marta - You're turn :D