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Tirava sempre o anel do dedo na esquina da padaria para que no lar não pensassem que enlouquecera de vez. Eles já a achavam doida, ouvia-os nos corredores, eles achavam que não, mas ouvia-os. Varrida, varrida, conspiravam, quando a viam pelas costas. Subestimavam-lhe a audição, era o que era, mas deixara de se preocupar com isso havia tempo. Tinha coisas muito mais importantes a fazer. Como ludibriar a rotina do quarto da mansarda delineando num papel as combinações possíveis: segunda e terça, segunda e quarta, segunda e quinta, segunda e sexta. Só terça. Terça e sábado, quarta e domingo, sexta e sábado. Só domingo. Isso era importante, vital, prioritário, respiração, sentido, rumo. E aqueles velhotes que contra ela falavam não, não sabiam, sequer imaginavam, as coisas que tinha para fazer, pensar, decidir, preparar. Vidas sem sentido eram as deles, loucas até, a vida esgotar-se e a consumir o calendário, e eles a jogar às cartas, ao berlinde, ao bilhar, à bisca, à canela com reumático e a conspirar contra quem tem vistas largas. Como ela. Foi há um ano, ano e meio, dois (?) já não lembra, que aquele pedacinho doirado a brilhar no passeio lhe cativou a atenção. Olhou para um e outro lado e os transeuntes apressados não pareceram reparar nela, mulher velha, cruzes tortas a baixar-se junto ao esgoto para apanhar um anel. Melhor, assim. Era dela. dela, dela, dela. não podia usar no lar, não podia, os velhotes, já se sabe, iam gozar, provavelmente humilhar, à frente talvez, já não nas costas. E isso ela não iria aguentar. Aí começou o plano, que coseu na cadeira de baloiço ao mesmo tempo que umas botinhas brancas para a neta da Matilde. Tinha de arranjar um sítio onde fosse livre para ver brilhar o anel: porque não a pensão, aquele onde a filha da Josefa se perdeu de amores pelo jardineiro, que ficava depois da esquina da padaria do Manel da Tita e antes da joalharia da Tonia e do Zeca. Ninguém saberia, estava certa. Pelo menos não os velhotes do lar, sempre zombeteiros dos males de amor, nunca os encontraria num sítio onde não houvesse bisca nem berlinde. Telefonou. Pediu o quarto da mansarda. Marcou para daí a uma semana a primeira tarde. Juntou papel e caneta na bolsa do tricot, envolveu o anel num guardanapo que encontrara na sala comum e cheia de si entrou. Puxou os lençóis para trás, para desviar as atenções, olhou a janela e começou a escrever, depois de colocar o anel. Sabes, António, o mal que me fizeste/não impede este amor que perdura/ para lá do tempo que foi o nosso.
O poema era sempre o mesmo.
Tarde após tarde. Nunca o conseguiu levar para o lar com medo que os velhotes descobrissem. Deixava-o por isso junto com a nota de dez ao sair. Porque se o anel só era dela no quarto da mansarda, o amor também. O não-amor. O amor que não chegou ao altar porque o António desistiu da louca, como se dizia na terra, da doida, varrida varrida, há quase cinquenta anos. E ela que queria tanto uma aliança.
[Para ti, Cristina, porque não é fácil continuar um texto brilhante]
9 comentários:
Texto muito bom, como só tu, tu ,tu sabes fazer :)
Cristina - Nesta estória é uma senhora ;)
:*
Olá Marta
A tua escrita feminista tinha de fazer do homem o mau da fita né ? :)
Quanto ao brilho e ao brilhantismo do texto ela está tanto no mote quanto nesta continuação.
Sabes que eu fiquei espantada por a vossa personagem ser homem? Para mim sempre foi uma mulher, não sei porquê :) Obrigada, Pedro, pelo comentário :)
Adorei Marta. Adoro a forma como escreves a loucura-que-não-é-bem-loucura dos outros e que afinal não é mais do que os nossos olhos.
Gostei que fosse uma mulher. :)) Nunca que defini o género na estória, mas foi numa mulher que pensei.
Sobre o brilhantismo, o Pedro tem razão.E está na hora de terminarmos com os "galhadertes" num sitio, sem estrelas, nem mais nem menos brilhantes. Um sitio com pessoas que partilham o gosto pela escrita. E que me fazem sentir uma tipa de sorte. ;)
beijinhos
(Já te disse que adorei?)
Curioso falarem nisso. Procurei escrever a história sem que nunca ficasse explicito quem era homem e quem era mulher :)
Marta
Para a próxima semana aguardamos um desafio da tua autoria e assim fecharemos este ciclo de escrita criativa cujos resultados têm sido bem curiosos e engraçados.
Cristina,
não imaginas como fico feliz com o teu comentário: por teres gostado, por o dizeres dessa forma :)
já tenho um desafio pensado: vai ser o máaaaaaaaaaaaaaaximo :)quando achas que o devo pôr?
Marta:
Penso que depois de postarmos os textos do desafio do Pedro. O que te parece?
Acho que sim :) E a Isabel também tem a mesma opinião :)
na segunda ou terça-feira aí estará ele(o desafio) à vossa espera :)
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