Duas Estrelas

‘Alugava o quarto da mansarda todas as semanas. A dias diferentes para que não pensassem ser uma rotina. Chegava sempre depois do almoço. Sentava-se na borda da cama a olhar para janela que dava para os telhados da cidade. E ficava ali, de olhos cansados de não chorar. Depois puxava os lençóis para trás. Colocava o anel que encontrara no passeio. Que parecia quase uma aliança. Quase. Sentava-se na secretária e escrevia um poema de amor. Que deixava no balcão ao sair, juntamente com a nota de dez.’
No regresso de mais uma dessas peregrinações, sentou-se no banco de jardim a reviver, mais uma vez, cada passo daquele caminho rumo a um oásis que, não passava de uma miragem no seu deserto interior.
Na sala de embarque do aeroporto, preparava-se para ligar aos pais, a dizer que o voo partiria com duas horas de atraso, quando o telemóvel lhe escorregou da mão e se desmantelou no chão. Sob o seu olhar surpreendido, um braço surgiu a apanhar e reconstituir o aparelho: – Muito obrigado. – De nada. Amesterdão? – Sim. Mas está atrasado. – Eu sei. Também vou. Sentaram-se lado a lado numa posição de onde avistavam o placard que anunciava a situação de cada voo. – Então? Umas férias? – Não. Estou a fazer um doutoramento em história da arte e preciso de fazer alguma investigação sobre os pintores pós-impressionistas, Cézanne, Gaugin, Van Gogh…. E Você?. – Um programa certamente menos interessante, sou oftalmologista, vou a um congresso sobre novos métodos de tratamento do estigmatismo. Embarcaram finalmente. À chegada reencontraram-se, talvez de forma não totalmente ocasional. – Amanhã, temos a tarde livre. Podia mostrar-me o museu Van Gogh que, já conheço e adoro mas, nunca o visitei através dos olhos de um especialista. – Ok. Duas e meia à porta? – Combinado.
Após a visita ao museu decidiram prolongar a estadia até ao fim de semana. Durante o passeio de barco, através dos canais que fendem a cidade, partilharam o prazer desta e de outras viagens. Passearam de bicicleta, partilhando o prazer da descoberta de novas gentes e de lugares bonitos. E na noite que antecedeu o regresso, partilharam, pela primeira vez, o prazer dos corpos sôfregos de desejo.
Abriram contas de email cujo único propósito seria manterem o contacto. Retomada a rotina, iniciaram os encontros na estalagem discreta, situada no cimo de uma das colinas da cidade, como se tivessem decidido que aquela intimidade deveria permanecer clandestina ou então, porque essa clandestinidade era o condimento secreto que tornava irresistível a degustação daquela intimidade.
À noite, invariavelmente, trocavam emails, em longas conversas sob todos os pretextos imagináveis. E nessas conversas, pontualmente, sem cadência certa, um deles escrevia: - Amanhã às 14 no nosso quarto. E passou-se mais de um ano, entre as confidências escritas e os encontros em que se possuíam despudoradamente, retomando em seguida o rumo das suas vidas paralelas.
Um dia, à entrada da estalagem, encontrou um anel que logo reconheceu como sendo aquele que vivia pendente, no fio em torno do pescoço que tanto ansiava por voltar a acariciar. Guardou o anel, entrou e esperou, e ninguém compareceu ao encontro nesse dia, nem nos dias seguintes, nem nunca mais.
Porque nunca lhe havia perguntado o nome nem nunca lhe tinha dito o seu? Porque nunca lhe tinha perguntado se tinha família, onde vivia, um número de telefone, nem lhe tinha dado essas mesmas informações?
Esta noite, mandaria um novo email, na certeza de não obter resposta. Amanhã, compareceria a um novo encontro em que não haveria ninguém para encontrar, numa profissão de fé idêntica à de quem, mantém a vela acesa aos pés da santa cuja existência jamais poderá constatar.

À CNS com amizade

4 comentários:

Isabel J. disse...

Os encontro e desencontros da vida são mesmo assim... :)

Boa Pedro.

:*

MMS disse...

Há encontros que nunca chegam a ser mais do que miragens, frutos breves que não chegam a cair da árvore para as nossas mãos.

Mostraste isso muito bem, Pedro!

CNS disse...

Gosto de desencontros. Não me perguntes porquê. Mas os desencontros são estórias ricas, cheias de daquilo que não vê, e transbordadas daquilo que apenas se sente.
Gostei muito Pedro.

(Obrigada)

MMS disse...

Concordo, Cristina! Os desencontros são tão cheios do tanto que ficou por dizer que se tornam tão ricos para escrever :)