O Mundo do Vasco – III - Os sapatos de verniz

- Oh Vasco amanhã jogamos contra os do Talasnal, no campo da escola, queres ser guarda-redes? – Não tenho equipamento. – Arranjas umas coisas pretas lá em casa. – Mas de preto não é o árbitro? – O árbitro é o Carlos padeiro, vai pedir umas calças ao pai e vem de branco.
Revolveu a casa à socapa até conseguir juntar uma indumentária adequada à ocasião. Os sapatos de verniz e as meias de lã até ao joelho que o pai tinha usado apenas no dia do casamento e no enterro do avô, os calções cinzentos com que tomava banho no rio no verão e que serviam de roupa interior no inverno e uma camisola de manga à cava da avó que era quem tinha mais roupa preta lá em casa.
Os de Talasnal eram mais altos, mais gordos e mais fortes e quase tão arruaceiros como os de Penela. Começa o jogo e rapidamente se transforma num festival de sarrafada, com o circo armado pelos locais, em volta do campo, a insultar tudo o que mexia. O Tó perde a bola no meio campo e o Penedos do Talasnal isola-se frente ao Vasco impotente que ainda se lhe lança aos pés, leva uma patada no estômago e fica no chão, a ver a bola passar-lhe por cima, por entre as estrelinhas prateadas que lhe pululam de todos os orifícios da cabeça.
- É pá, quem é que pôs o bala perdida na baliza? Então não sabem que o rapaz se põe um olho na bola, o outro fica a olhar para o sino da igreja?
O Vasco ouviu e fica possesso, lança-se a todas as bolas desenfreado, ora com as mãos, ora com os pés. Antes do intervalo, já o Tó empatara, com um golo de cabeça, numa bola dividida com a cabeça do adversário que seguiu para a enfermaria enquanto os colegas apelidavam o Carlos padeiro de cobras e lagartos e outros bichos com chifres. As meias do Vasco podiam ver-se, por entre as biqueiras dos sapatos, a fazer lembrar sapos de boca escancarada.
Penalty! contra o Talasnal. O Xico chuta, a bola bate na trave da baliza e fica-lhe ao alcance da cabeça que a rechaça, fazendo-a entrar pelo meio das pernas do Guarda-redes. Humilhação! Porrada de criar bicho. Fim do jogo. Fim de tarde em festa no Chiqueiro. E fim de festa já tarde, na casa do Vasco, com o cinto do pai a gravar-lhe no corpo o valor dos sapatos de verniz.

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