(Isabel, sofro do síndrome de interpretação livre, perdoa-me) :)
Não havia dia que não o levasse. Na infância, camuflado na mochila da escola junto com brinquedos e mudas de roupa e migalhas de chocolate das bolachas do lanche. Na adolescência, dentro da mala preta a tiracolo com os cigarros escondidos que comprava a meias com a prima, as chaves de casa confiadas pelos pais, a carteira com o velhinho cartão de estudante, meia dúzia de rebuçados de mentol para encapotar o hálito, elásticos para domar o cabelo. Nunca o escondeu de ninguém mas também nunca fez gala de o mostrar. Nunca dizia: está aqui, vejam, o meu frasco. Os amuletos não se gastam, dizia-lhe a mãe, mas ela não queria arriscar. No início de cada ciclo, de cada nova turma, questionavam-na, claro que a questionavam, sobre aquele frasco de estimação. Mas cansavam-se, esqueciam-se, lembravam-se da banda ontem na MTV, do miúdo giro transferido de outra escola, da festa de sexta feira à noite. Cansavam-se, esqueciam-se e rapidamente o frasco deixava de ser tema de conversa.
Um dia, o frasco partiu-se. Foi um disparate, um disparate de acidente. Tinha feito 18 anos há poucos dias, assumido finalmente que fumava, trasnferido os rebuçados de mentol para a carteira da prima. Cortou o cabelo, já não precisava de elásticos. Nem do cartão de estudante, só faltavam os exames finais. A festa era hoje. A grande festa na discoteca da moda, prometida pelos pais desde os 16. Pôs-se de pé na cama, o esquerdo, depois o direito, finalmente o balanço enterrado nas almofadas, para se ver ao espelho. Enlevada com o reflexo desequilibrou-se. Em queda livre abalroou a mala que repousava em cima da colcha. A mala a tiracolo que também queria reciclar nesta fase de mudança. O frasco terminou no chão, cacos de frasco, cacos de amuleto, cacos de vento da serra, que a avó lhe estendera pouco antes de morrer. Lembrava-se das palavras, tão bem: o vento é a nossa alma, Ricardina. Não se vê mesmo que sejamos transparentes, tão transparentes como este frasco que te estendo, mas é ela, a alma, que nos ajuda a voar. Ricardina tinha seis anos e adoptou o frasco sem entender as palavras. Transportou-o desde então como uma relíquia. Uma relíquia com rótulo: Vento da serra.
(talvez hoje fosse a altura certa para perceber que a alma não se pode aprisionar. Tal como o vento. Basta um segundo, um acidente, uma desilusão, uma queda, para a gaiola se partir. Talvez fosse isso que a avó pretendia, e que só hoje, hoje a caminho do hospital com uma perna partida, ela finalmente percebera. Talvez fosse isso)
11 comentários:
Pelos vistos achamos que há avós por detrás do vento da serra :)))
Mas é verdade. Nada se prende num frasco. Nem naqueles feitos de vidro grosso de medo.
Gostei de respirar-te. :)
ADOREI :D
Simplesmente genial.
Adorei tudo, desde terem estado em sincronia com avós, a terem aceite o meu desafio.
Obrigada :)
É mt bom poder respirar-vos e ler-vos.
:*
Que bom que gostaste da nossa sintonia de letras com o teu vento da serra :)
Obrigada nós (não é, Cristina?) pelo teu desafio tão bom :)
É sim, Marta. Temos de fazer mais vezes este tipo de coisas, não acham?
bjs ( e obrigada pelo mote, Isabel :) )
temos mesmo que fazer isto mais vezes: alinho :)
e podemos ter outras iniciativas blogueiras - tipo um mesmo tema para todos por mês (como fizemos no curso) e outras coisas mais do género. O que acham? O que sugerem?
Isabel, fiquei a pensar no que disseste e achei por bem apagar o comentário hhihiihihihihih :)
AHAHAHAH :D
Eu axo q fizeste bem... nunca se sabe.
Qt às iniciativas, fico a aguardar as vossas ideias :)
:*
é melhor, sim :)
vou pensar em ideias e depois 'emailo-vos' :) pensem também! :)
Gostei do teu texto e sobretudo do parentises.
Realmente teve graça essa sintonia das avós. ainda bem que não vos li antes de escrever senão também me teria deixado levar.
A tua escrita tem uma candura impressionantemente feminina.
Quanto às iniciativas para outros temas colectivos espero que sejam unisex para que também eu possa participar.
Obrigada, Pedro :)
Já ando a pesquisar na net o que podemos fazer, espero até ao fim da semana ter uma ideia luminosa :) e, claro, sempre unisex :)
Marta
Tive uma ideia !
Juntamos os melhores textos do blogue e fazemos um livro à imagem dos livros para crianças :
365 short stories para ler antes de dormir
;) :)))))
:) essa é que essa!
S-U-C-E-S-S-O :)
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