Poema em dois tempos
Ela desce a rua. Em passo apressado. Ele sobe a calçada. Lentamente. Para ela são 8 da manhã. Para ele 8 da noite. Ela corre para a manhã. Ele regressa do dia. O som dos saltos no recorte preto e branco da calçada. Há flores de tília no chão. Ele pára. O dia dilui-se na humidade de Outono. O vestido leve de flores . Ele aconchega-se na fazenda do casaco. Bom dia. Ela sorri para o revisor. Boa noite. A porteira arrasta a vassoura na entrada do prédio. Ela abre o livro de poesia. O reflexo da cidade no vidro do comboio. Os versos com cheiro de carris. Um sorriso nos lábios. Ele senta-se. O rio para lá do cortinado. Na mesa da sala a caneta de aparo. Os poemas nos dedos. Ela suspira. O comboio embala-lhe o sonho. E quase sente os braços do poema aquecerem-lhe a solidão. Ele imagina uma mulher de vestido de flores. Escreve para ela. Cria em duas estrofes um amor de uma vida. Ela sente o cheiro do Outono passado no virar das páginas. O comboio pára. Ela guarda o livro. Ele pousa a caneta de aparo. Susana. Ela pára. Pareceu-lhe que a chamavam. Olha para trás. Ele repete. Susana. E escreve o nome na folha de papel. Ela sorri. Lembra-se do poema com o seu nome. E atravessa a rua em passo apressado.
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4 comentários:
dois tempos, duas vidas (a mesma?), um poema. tão bem mascarado o passado, o presente, as recordações, o tudo-nada que são os dias. Gostei tanto que receio não conseguir explicar aqui - e ter feito uma confusão a tentar fazê-lo :)
Excelente! :)
Todas nós gostaríamos de ser fonte de inspiração de alguém... certo? ;)
:*
Bonita esta sintonia das almas. A tua escrita é luminosa e limpa.
( creio no entanto que ele se terá sentado 'à' mesa e não 'na' mesa - Lá está o gajo armado em Alice ;) )
Sem desprimor para ninguém acho que és a estrela deste blogue onde nós somos apredizes de feiticeiros.
Isabel e Marta:
Obrigada... ( as reticências aqui aplicam-se MESMO)
Pedro:
Tens razão. Já emendei. :)
Somos todos aprendizes desta feitiçaria.
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