Oitenta e oito

Redondo. Oitenta e oito é, de todos, o número mais redondo.
Dois oitos: duas vezes duas argolas, uma por cima da outra, prestes a cair.
Dois oitos: quatro bolas que se desequilibram. Que giram, que rodam. Que escorregam do peso.

Isso. Oitenta e oito é, sem dúvida, o número mais pesado de todos os números. Nunca outro me pesou tanto.


Aos onze, carrega duas irmãs ao colo, a caminho de casa, para lhes dar de comer, enquanto a senhora sua mãe e o senhor seu pai ganham na ceifa o sustento da família. Aos doze, doem-lhe os olhos, cansados de enfiar e desenfiar linhas para dominar o ofício da costura. Aos treze, catorze e quinze, a gravidade cava-lhe os ossos cada vez que a rega não espera o fim da madrugada.

Aos dezoito, as duas irmãs são quatro e já se podem amparar, enquanto ela acarta molhes de palha, cestas de uvas e sacas de feijão. Com vinte, o coração é um calo, orgulhoso por esconder as lágrimas com a notícia de que Joaquim vai para a tropa. Com vinte e um, os dedos torcem-se em laços à procura de palavras para lhe escrever – o estômago, uma noz, ao saber que está preso na Trafaria por roubar favas aos cavalos do quartel.

Aos vinte e três, Salomé; vinte sete, Florinda; trinta e um, Joaquim. E a pneumonia. Grávida de sete meses, um mês fica sem ir à cama – para poder velar por sua mãe, que jaz moribunda com as dores do cancro. E é a si que chama, é a si que quer.

Aos quarenta, Salomé sai de casa. Primeiro para estudar, depois para viver na cidade. Meses mais tarde, há-de provocar uma pequena revolução familiar quando regressar de visita, mulher feita, usando calças.

Aos quarenta e dois, é a vez de Florinda e Joaquim partirem. E depois começam as chegadas: o primeiro e segundo netos.

Aos cinquenta e sete anos, os músculos gritam de alívio ao contemplar a casa acabada de construir. Tijolo, cimento, suor e muita força de braços e de vontade dão as boas-vindas aos netos números três, quatro, cinco, seis e sete.

Décadas de ceifas, vindimas e sementeiras; couves, batatas e azeitonas; figos, morangos, e maçãs; alfaces, botelhos e agriões não a impedem de embalar os recém-nascidos. Os mesmos que, anos mais tarde, a embalam, por vezes, numa cama de hospital.

São décadas de “levantar cedo e cedo erguer” para distribuir os frutos do trabalho pela família. O hábito torna difícil aprender que, por vezes, vale mais esperar que o galo se canse, que galinhas são galinhas e pessoas são pessoas, e a saúde delas não pode obedecer à mesma lei.

Mas o que é obstáculo, afinal, para quem apanhou azeitona com uma perna partida, sobreviveu a um micro-AVC, abriu a cabeça ao meio, virou o tempo do avesso ao casar-se com o pior dos pretendentes?

Por isso, ela consegue. Aprende a ficar sentada, a ligar a televisão, a cuidar de si e a dizer quando não está bem, que isso não é igual a ser queixinhas, que não é ser um peso. Aprende a não cozinhar, a não semear, a não regar e a não lavrar, que isso não é o mesmo que parar.


Oitenta e oito.
Dois oitos.
Quatro bolas pesadas que se desequilibram e querem fugir daqui para fora.

Pensando melhor, talvez sejam balões cheios de oxigénio que poisam pela primeira vez depois de um longo voo.


[Parabéns, avó!]

9 comentários:

CNS disse...

Bem vinda Rita! :)

E parabéns à detentora do número redondo.

pbc disse...

Longa vida a esta Avó. Também tive o privilégio de ser neto de uma grande mulher. Neste tempo, fruto de suma sociedade conservadora e patriarcal aconteceram grandes mulheres que de forma anónima e muitas vezes sofrida eram o verdadeiro garante dessa instituição entretanto caída em desuso chamada família.
Alguém me pode dizer quem se esconde atrás deste pseudónimo ? não identifiquei...no entanto parabéns à neta também.

Isabel J. disse...

Parabéns à avó e à Rita pela bela estreia.

:*

via disse...

Parabéns à tua avó! longevidade na família é bom sinal! prepara-te para longa vida! bjos para todos

MMS disse...

Muitos parabéns à avó coragem! :)

atirpliz disse...

Que coisa bonita! Obrigada!
Beijos, Rita D

atirpliz disse...

Venho pedir-vos desculpa pela falta de comparência, escrita, leitura, etc etc etc (;)) Vou tentar ter mais jeito e engenho para escrever aqui, mas confesso que - não sei porquê - é-me muito difícil escrever num blog. Já estive inscrita em dois e fui acusada de voyeurismo... Vou tentar que desta vez seja diferente, juro!
Bjs a todos
Rita D

R. disse...

Ou ainda simbólicos mundos, feitos de experiência e sabedoria para repartir. Muitos parabéns por tão comovente tributo.

siri disse...

olá a todos, queridos companheiros de escritas. muito obrigada pelos comentários. é um prazer estar aqui com todos vocês.
pedro: sou a rita ruiva, que habitualmente se sentava ao teu lado.
já agora, via, quem és? não consegui identificar.
gostava de dizer que o meu avô também é uma pessoa admirável. está ali um casal e tanto. quem sabe num próximo post :P