bailarina

Sempre quis ser bailarina.
Rodar em pontas sem perder a compostura.
Sempre quis ser bailarina.
Inscreveu-se no ballet, não a aceitaram.
A senhora vem inscrever a sua netinha?
Vinha inscrever-se finalmente, depois de ouvir aquele doutor dizer na televisão que a reforma era altura para concretizar paixões antigas.
Agora as palavras não lhe saíam da cabeça: a senhora vem inscrever a sua netinha? Que idade tem a menina? Já dançou a netinha antes? Quer conhecer as instalações?
Não tinha nenhuma netinha. Antes um neto, rapaz que se transformou em homem feito sem tempo para lhe mudar a fralda. Diz que se meteu por maus caminhos. Que abalou sem deixar postal ou casamento.

Saiu do conservatório e dançou toda a noite frente ao portão.
Amanheceu num hospício, alguém a levara, quando exausta de tanto dançar despiu ali mesmo o tutu e desfez o coque do cabelo.

A senhora já não tem idade para estas coisas, disseram-lhe as batas brancas.
Mas foi o doutor que disse lá na televisão.

Sempre quis ser bailarina.
Rodar em pontas sem perder a compostura.
Mas amanheceu num hospício sem ninguém a quem ligar.

Não fossem os fios que a prendiam à cama e rodava era a baiana.

[adenda: 'rodar a baiana': perder a cabeça, fazer um escândalo, armar confusão]

5 comentários:

CNS disse...

Esta mania de agrilhoarem os sonhos com a idade...

Muito bom Marta! :)

pbc disse...

Afinal ainda há vida neste sítio!


Não importa que nos chamem loucos enquanto formos capazes de sonhar, de acreditar e de resistir.

MMS disse...

Obrigada, companheiros :)
e sim, há vida aqui: porque, como diz a Cristina e bem, não é preciso um nome, apenas um sítio!

Isabel J. disse...

Excelente Marta :)

Dei por mim com um sorriso patético na cara.

Eu axo q qd for velha, tb vou ser assim...
Se nao me ponho a pau, qq dia tb acordo amarrada com batas brancas à minha volta.

Se derem por minha falta, procurem-me sff! eheheh


Muito BOM mm :D
:*

MMS disse...

Oh Isabel, obrigada :)fico muito contente. E deixa-me dizer-te que não comentei a tua Julieta por não saber o que dizer, por saber que quando dói as palavras não ajudam. Mas comovi-me à séria.