EXISTIR

André Kertész, Vert Galant ao cair da tarde, 1963

A palavra Absurdidade acabou-me de nascer na caneta; ainda agora, no jardim, não a consegui encontrar, mas também não a procurava, é verdade, não era preciso: pensava sem palavras, sobre as coisas, com as coisas. A Absurdidade não era uma ideia na minha cabeça, não era um sussurro, mas esta longa serpente morta aos meus pés, esta serpente de madeira. Serpente ou garra ou raiz ou estufa de abutre, não é importante. E sem nada formular com clareza encontrei a chave da existência, a chave das minhas náuseas, da minha própria vida. De facto tudo o que, em seguida, pudesse apreender conduzia-me de volta a esta absurdidade fundamental.
Absurdidade: uma palavra ainda; debato-me contra as palavras; ali em baixo, toquei a coisa. Mas quero fixar aqui o carácter absoluto desta absurdidade. Um gesto, um acontecimento, no pequeno mundo colorido dos homens, só é absurdo relativamente: em relação às circunstâncias que o acompanham.  Os discursos de um louco, por exemplo, são absurdos em relação à situação em que se encontra mas não em relação ao seu delírio.. Mas eu, ainda há pouco tive a experiência do absoluto: o absoluto ou o absurdo.Esta raíz, não há nada em relação ao qual ela não seja absurda. Oh! Como posso eu fixar isto em palavras?
Absurdo: em relação aos calhaus, aos tufos de erva amarela, à boca seca, à árvore, ao céu, aos bancos verdes. Absurdo, irredutível; nada – nem mesmo um delírio profundo e secreto da natureza –o pode explicar. Eu não sabia tudo, evidentemente, não vi o germe desenvolver-se nem a árvore brotar. Mas diante essa pata gorda e rugosa, nem o saber nem a ignorância têm importância: o mundo das explicações e das razões não é o mesmo da existência. Um círculo não é absurdo, explica-se muito bem pela rotação de um segmento de recta à volta de uma das suas extremidades. Mas também um círculo não existe. Esta raiz, ao contrário, existia na medida em que eu não podia explicá-la. Nodular, inerte, sem nome, fascinava-me, enchia-me os olhos,  reconduzia-me incessantemente à sua própria existência. Poderia repetir: “ É uma raíz” –não tinha efeito. Via bem que não podia passar da sua função de raiz, de bomba aspirante, a isto, a esta pele dura e compacta de foca. A este aspecto oleoso, calejado e entretelado. A função não explicava nada: permitia compreender grosseiramente o que era uma raiz, mas não esta. Esta raiz, com esta cor, esta forma, o seu movimento de fisga, estava…para lá de toda a explicação.”
 Tradução Helena Serrão
Jean-Paul Sartre “ La Nausée” gallimard, Barcelona 2009, pp.184, 185
1ª Edição gallimard, 1938
 

mercado automóvel


O mercado automóvel, como agora se diz, o mercado automóvel. Sábias palavras, escorreitas, abrangentes, pasteurizadas, leves, ordenadas, confiáveis.            Imagine-se uma roulotte que vende cachorros quentes à porta de uma discoteca da moda. imagine-se que o tipo da roulotte deixa de vender cachorros quentes e passa a automóveis, muda para espaços amplos, tira a camisola interior e veste camisa e gravata, mas continua de pinça na mão a acabar o produto e passar para o dinheiro no bolso. O cliente é rei, tem sempre razão desde que aceite as regras que são estas: podes escolher recheio, a salsicha nuazinha e as opções. A diferença está no preço:  as prestações são a saída inteligente, é assim porque sim... tens de hipotecar, aí a seis anos ou sete,  podes assim escolher opções mais caras porque dividindo o excesso em 70 prestações nem se nota. bato palmas porque etou a ver, a ideia é vender o sonho. Sobre o que vais amargar para o pagar não se fala. Enquanto a roulotte te proporciona instantes de prazer guloso com consequências  previsíveis, estes aqui, os do mercado automóvel, fazem-te crer que precisas do que não precisas e agarram-te durante uma parte importante dos anos que te restam para viver, sugam-te, vampirizam-te, deixam-te sem pinga de sangue e depois quando olhas para a lata velha finalmente  tua, descobres que já não te serve porque não anda.

Desafios dos Provérbios

Olá :)

Que tal um novo ciclo de desafios para ver se o blog mexe?

Eu e a Cristina pensámos que seria giro, para variar, fazer de provérbios. A ideia mantém-se - fazer textos baseados na nossa interpretação do dito provérbio...

E para começar, cá vai o primeiro:

"Bom é saber calar até ser tempo de falar"

:*

Digo Alentejo

Digo Alentejo

Digo para ver

Sophia

Aos meus Avós,

Amélia e Francisco,

Maria Joana e João,

Antónia e Aurélio

Digo Alentejo e sinto em mim ressonâncias de um tempo antigo e distante. O tempo em que festejavam o dia dos meus anos, o tempo em que eu era mais eu, porque me desconhecia.

Tudo começou ainda antes de eu nascer. Nesse Alentejo mítico dos meus bisavós, avós e pais. Nesse Alentejo onde eu nunca nasci, mas que era “a minha terra” de férias grandes e de mornas sestas embaladas pela voz da minha avó: “Dorme, dorme, meu menino…”

Digo Alentejo e recordo o calor da paisagem e a exalação das searas quietas, a frescura da manhã quando ainda se viam estrelas no céu e juntos caminhávamos para a horta, a regar o lindo emaranhado de feijões verdes agarrados às canas secas, que eu continuo a detestar por serem verdes.

Sempre me fascinava observar o trilho das águas através da terra seca e a vida que rodeava o poço antigo e fresco: cobras, mosquitos, abelhas, lagartixas e flores, muitas flores, sempre-vivas, que levávamos para casa para sempre.

Digo Alentejo e vêm-me à memória dos sentidos os campos amarelos, as amoras cheias de pó que deixavam uma nódoa negra eterna e que diziam aos nossos pais “já namoras”, os canchos duros que quebravam a lisura da paisagem, onde se encostavam os sobreiros, as azinheiras, as verdes oliveiras a quem batíamos para darem mais azeitonas quando chegasse o Inverno…

E como esquecer o repetido eco das cigarras, zurzindo a calma da tarde flamejante, o som dos grilos escondidos nos buraquinhos do chão, única perturbação das sestas em cima da cama, na escuridão fresca de cal do meu quarto de menino.

Digo Alentejo e lembro-me dos doces que tias e avós me davam generosamente e que eu guardava como um tesouro açucarado dos carreiros teimosos das formigas.

Evoco as missas onde aprendia palavras estranhas, “súplicas, preces, oblações” que ninguém me sabia explicar de tão mágicas e repetidas e sagradas, como num encantamento em que o importante não é a palavra, mas o som, o desejo, o gesto, o ritual de água e azeite num alguidar, contra o mau-olhado, a lua, o sol, o vento suão… e que sempre curavam todos os males do corpo e da alma.

Digo Alentejo e vejo caras enrugadas e sem dentes, mãos grandes e deformadas, ásperas, secas, corpos pequenos e apoiados por bengalas, num passo cadenciado e lento, arrastado de ternura e vida, de anedotas do Bocage e lembranças da miséria que era dividir uma sardinha por quatro, milagre digno de um Messias distante no tempo e na história.

São essas caras que já não vejo quando te visito, Alentejo, terra sagrada que guardas as minhas memórias e os meus antepassados saudosos, e onde me reencontro comigo mesmo.

Digo Alentejo e sinto-te cá dentro do peito a bater, o teu calor, o teu frio, o teu excesso, a tua teimosia, o teu fogo me guiam e acompanham agarrado aos genes e aos gostos, ao esforço que ninguém te reconhece, Alentejo, por inveja e anedota dos que não te conhecem, nem às tuas boas gentes.

Por isso te celebro nestas palavras e te eternizo, Alentejo, minha terra onde não nasci, mas onde me conheci, Verão a Verão, férias a férias, numa cadência certa de Natais, Carnavais, Páscoas e Senhoras da Graça, com missa, procissão e quermesse, com bailes em que os homens ficavam a ver as mulheres dançar umas com as outras, de vergonha, touradas à vara larga, numa perfeição cósmica sem mudanças nem sobressaltos.

Digo Alentejo e a própria palavra ganha novos significados, foge-me da etimologia certa e segura e transforma-se num tempo perpétuo, num espaço deslocado que me acompanha, num cheiro a ervas secas e a pó, num sabor a melancia madura a escorrer pelos cantos da boca, num horizonte distante da memória do que foi e é para mim Alentejo.

José Miranda

13/05/2011

36 e meio

Todas a sextas de manhã era o mesmo. O corpo doía-lhe da pancada que ele lhe dava depois de se servir do corpo dela. Aliviava a raiva nela, de todas as formas que o corpo lhe permitia. Porque o fazia num silêncio ressentido que nela deixava nódoas negras ainda maiores. E mal havia luz do dia, ela levantava-se devagarinho e sem gemer. Para não o acordar. Para não o ver chorar e prometer-lhe que não voltava a acontecer. Preferia a pancada e o corpo rígido sobre o dela. Lavava-se, vestia-se e corria para a sapataria que ficava em frente à repartição de finanças onde trabalhava. E lá estavam eles. Vermelhos, sem preço.  Que as coisas que nos descansam os olhos não têm preço, dizia ela. E onde ias tu com uns sapatos daqueles, mulher? Perguntava-lhe a colega gorda e de cabelo oleoso, que estava na tesouraria. Até ao fim do mundo, respondia. Porque só o fim do mundo fica suficientemente longe daqui.
Até que numa sexta feira, daquelas sem movimento, uma mulher que já fora bonita pediu-lhe baixinho  a  guia para pagar o selo do carro. Ela levantou os olhos do teclado do balcão e viu-lhe o rosto negro e amassado, que tentava desesperadamente dissolver-se na madeira do balcão. O meu homem zangou-se por eu ter deixado passar prazo. Fez um sinal à colega gorda e oleosa da tesouraria. Um sinal com a mão, porque o nó da garganta não a deixou falar. Para que ficasse no lugar dela um bocadinho. E saiu disparada até à loja da frente, onde comprou os sapatos em troca da aliança. Nem se quis ver ao espelho com eles calçados. Disse o dono da sapataria. E também não disse para onde ia. Mas não deve voltar.Que os sapatos lhe serviam como uma luva.

sapatos e cartas*

Chamaram-lhe Vitória depois da mãe morrer de parto ao dá-la à luz. Dar à luz quando se morre é por demais triste mas eles quiseram que ela se chamasse Vitória e quiseram empregar a expressão da luz apesar da escuridão. Cresceu entre os silêncios do pai, os desatinos da avó e as exigências da tia. Conheceu 22 madrastas e viu o pai beijocar pelo menos mais sete às escondidas (achava ele). Da mãe durante muito tempo, tanto tempo, soube pouco, umas quantas fotografias amarelecidas pelo tempo, páginas rasgadas de um diário que revelava mais de um dia-a-dia sem sal do que a pessoa que eventualmente havia sido. Mas um dia, entre uma lida e outra da casa, descobriu um alçapão macerado pelo tempo. Lá dentro, uns sapatos vermelhos e um maço de cartas por ler. Bastou-lhe isso, bastava-lhe isso. não eram dela, eram da mãe, mas assim cumássim ela já não estava. Calçou-os e dançou até à meia noite. Vitória, que nome tão lindo quando se nasce uma segunda vez.

*a inspiração demorou. ainda está a caminho, devagar. desculpem-me mas compreendam-me :) espero que seja desta :)

Mais uma tentativa...

Para verem a imagem cliquem aqui

Já sabem qual é a ideia, não sabem? Vá, dêem sinal de vida ;)

Caixa de Sândalo

Sempre que imaginava as coisas mais do que três vezes, elas aconteciam.  Acontecera com o vizinho. Que fora encontrado morto  na cama. De rosto retorcido pela dor. Tal e qual como ela o imaginara sempre que ele lhe respirava para cima do decote, enquanto lhe agarrava pelo braço.  Acontecera com o irmão mais velho, de quem tantas vezes se imaginara despedir  no cais, partindo para a guerra de Angola.  Acontecera a filha, de quem sempre imaginou a cor de fogo do cabelo. Mas quando se imaginou nos braços  do professor de música que vivia no anexo dos pais,  ganhou medo aos seus próprios sonhos.  Porque havia sonhos que uma mulher casada com um homem de cabelos pretos, não podia  ter.  Por isso, passou a escreve-los em pequenos cartões sempre que se repetiam. Escrevia-os na sua letra miudinha,  guardava-os numa caixa de madeira perfumada, escondida num canto do guarda-fatos.  Lentamente, foi-se esvaziando dessas coisas que lhe perseguiam a imaginação, na mesma toada  que a sua vida se esvaziava de gente e de tempo.  E quando a solidão grisalha chegou, lembrou-se da caixa. Abriu-a e tirou o cartão que tanto vazio lhe trouxera. E leu-o três vezes. Ou talvez mais. Leu-o até ouvir a campainha da porta. Para onde correu. Onde ficou de pernas tremendo. E quando a abriu estendeu-lhe os braços. Ao professor de música que vivera no anexo dos pais. A quem o tempo não roubara o cabelo cor de fogo.

as mãos que ainda são as minhas

Demoras-te nas minhas mãos. Não as reconheces?
Demoras-te e ficas, como antigamente. É de mim ou até as folhas que caem contam histórias? (a nossa é linda, meu amor)
Vejo-te à lareira, a ler a custo o jornal de ontem que a Eduarda aqui deixou (tu achas que é o de hoje) e lembro-me do dia em que me falaste em casamento. O meu vestido às bolas, o teu riso nos teus olhos, o pedido e o jantar.
Demoras-te nas minhas mãos mas não as reconheces.
Diz que é assim a velhice. Diz que é assim, meu amor.
Pudera eu levantar-me da cadeira e vestia o meu vestido às bolas para te ir comprar o jornal de hoje.