36 e meio

Todas a sextas de manhã era o mesmo. O corpo doía-lhe da pancada que ele lhe dava depois de se servir do corpo dela. Aliviava a raiva nela, de todas as formas que o corpo lhe permitia. Porque o fazia num silêncio ressentido que nela deixava nódoas negras ainda maiores. E mal havia luz do dia, ela levantava-se devagarinho e sem gemer. Para não o acordar. Para não o ver chorar e prometer-lhe que não voltava a acontecer. Preferia a pancada e o corpo rígido sobre o dela. Lavava-se, vestia-se e corria para a sapataria que ficava em frente à repartição de finanças onde trabalhava. E lá estavam eles. Vermelhos, sem preço.  Que as coisas que nos descansam os olhos não têm preço, dizia ela. E onde ias tu com uns sapatos daqueles, mulher? Perguntava-lhe a colega gorda e de cabelo oleoso, que estava na tesouraria. Até ao fim do mundo, respondia. Porque só o fim do mundo fica suficientemente longe daqui.
Até que numa sexta feira, daquelas sem movimento, uma mulher que já fora bonita pediu-lhe baixinho  a  guia para pagar o selo do carro. Ela levantou os olhos do teclado do balcão e viu-lhe o rosto negro e amassado, que tentava desesperadamente dissolver-se na madeira do balcão. O meu homem zangou-se por eu ter deixado passar prazo. Fez um sinal à colega gorda e oleosa da tesouraria. Um sinal com a mão, porque o nó da garganta não a deixou falar. Para que ficasse no lugar dela um bocadinho. E saiu disparada até à loja da frente, onde comprou os sapatos em troca da aliança. Nem se quis ver ao espelho com eles calçados. Disse o dono da sapataria. E também não disse para onde ia. Mas não deve voltar.Que os sapatos lhe serviam como uma luva.

4 comentários:

Isabel J. disse...

Que bela dança que nos leva até ao fim do mundo :D

Gostei muito Cris! :D

:*

CNS disse...

A dançar até lá; Isabel. O que uns sapatos vermelhos não fazem na vida de uma mulher ;)

MMS disse...

Os sapatos vermelhos de uma nova vida. gostei muito, muito Cris :)

CNS disse...

Para irem pela estrada de tijolos amarelos fora :))