o tempo que não lhe pertence

Apanha a roupa. Guarda a roupa. Cheira a roupa. Dobra a roupa. Arruma a roupa. E o tempo que não chega, que não estica, que não é meu, não é. O tempo é das horas e elas passam sem que uma pessoa se possa sentar um minuto que seja. E daqui a pouco são quatro e a miúda está à espera no portão da escola e as funcionárias a olharem de lado que raio de mãe é esta que não faz nada e nem se digna a vir buscar a miúda a horas dela não se constipar. Se elas soubessem que o tempo dela não estica, só escorre. E chega a casa e o jantar não tem de estar pronto, mas quase, às seis já tem de cheirar a refogado se não ele chega e diz que que raio de esposa é esta que nem o jantar tem pronto a horas decentes para um homem não ir para a cama com uma indigestão daquelas. Se ele soubesse que o tempo dela não estica, passa-lhe por entre os dedos que não têm anéis porque ele nunca lhe deu nenhum e ela jamais teve dinheiro para os comprar. Parece que ouve a irmã dizer que raio de mulher é esta que nem um trabalho arranja para comprar bijuterias baratas na Parfois, pelo menos, que não é preciso aquelas coisas da Pandora. São dez e apetecia-lhe ver televisão mas não vê, há tanta coisa à espera dela, e ia lá ela sentar-se no sofá e eles a olharem para ela e a pensar que bela vida a desta, que só descansa, vida dura é a nossa. Mas eles não sabem que o tempo dela não lhe pertence, é deles. Tivesse ela coragem e um dia ia embora. Ia embora ter tempo, tempo só para ela. Talvez comece amanhã. Eles não precisam de saber que depois de apanhar a roupa e antes de guardar, cheirar, dobrar e arrumar pode sentar-se na cadeira onde dá o sol às vinte e cinco para quatro. Eles não precisam de saber.