Algés

A oficina ficava perto da estação de comboio. De manhã, ele abria com as suas mãos de quatro dedos, as portas azuis, que deixavam cair mais umas escamas de tinta na calçada. Varria as aparas de madeira e trazia as cadeiras envernizadas para o alpendre. Ficava uns instantes à porta e acenava ao cigano que no Inverno vendia chapéus de chuva à entrada do túnel para a estação. No Verão vendia bóias e chapéus de sol. Adeus Alfredo, dizia-lhe. O cigano sorria e respondia. Já aí vou. O marceneiro ficava uns instantes à porta, a ver as pessoas a entrarem apressadas no túnel da estação. De onde se ouvia a musica desafinada do cego do acordeão. Os dias delas corriam mais depressa que os seus. Que se arrastavam por entre o cheiro pegajoso de verniz e as aparas que se acumulavam lentas, no chão da oficina. Depois do último comboio da manhã o cigano chamava-o à porta com duas cervejas na mão. Sentavam-se nas cadeiras do alpendre, bebendo as cervejas pelo gargalo. Em silêncio. Até que o marceneiro apontava para a marisqueira do outro lado da rua e dizia-lhe. Quando vender uma mobília de quarto pago a uma mulher e vou ali jantar. Nunca comi lagosta, nem sei a que sabe, dizia-lhe o cigano. O marceneiro suspirava e punha a garrafa vazia debaixo da cadeira. E eu ainda não sei a que sabe o corpo de uma mulher.

4 comentários:

MMS disse...

Tão bom :)
Cada um, na sua cadeira, a pensar naquilo que ainda não provou. A partilha é a mais solidária e humilde das virtudes. E humanamente triste.

Adorei, Cris
beijo grande

CNS disse...

Obrigada Marta :)

É isso mesmo. A mais solidária das virtudes.

bj

Isabel J. disse...

Adoro esta nossa virtude de partilhas, somos solidárias na escrita! :)

Mt bom.... fiquei com pena do sr. marceneiro, eheheh.

:*

CNS disse...

:)))

bjs, Isabel