Sempre que imaginava as coisas mais do que três vezes, elas aconteciam. Acontecera com o vizinho. Que fora encontrado morto na cama. De rosto retorcido pela dor. Tal e qual como ela o imaginara sempre que ele lhe respirava para cima do decote, enquanto lhe agarrava pelo braço. Acontecera com o irmão mais velho, de quem tantas vezes se imaginara despedir no cais, partindo para a guerra de Angola. Acontecera a filha, de quem sempre imaginou a cor de fogo do cabelo. Mas quando se imaginou nos braços do professor de música que vivia no anexo dos pais, ganhou medo aos seus próprios sonhos. Porque havia sonhos que uma mulher casada com um homem de cabelos pretos, não podia ter. Por isso, passou a escreve-los em pequenos cartões sempre que se repetiam. Escrevia-os na sua letra miudinha, guardava-os numa caixa de madeira perfumada, escondida num canto do guarda-fatos. Lentamente, foi-se esvaziando dessas coisas que lhe perseguiam a imaginação, na mesma toada que a sua vida se esvaziava de gente e de tempo. E quando a solidão grisalha chegou, lembrou-se da caixa. Abriu-a e tirou o cartão que tanto vazio lhe trouxera. E leu-o três vezes. Ou talvez mais. Leu-o até ouvir a campainha da porta. Para onde correu. Onde ficou de pernas tremendo. E quando a abriu estendeu-lhe os braços. Ao professor de música que vivera no anexo dos pais. A quem o tempo não roubara o cabelo cor de fogo.
5 comentários:
Há coisas que o tempo não rouba. Como os cabelos cor-de-fogo... mas principalmente como os sonhos :)
Lindo!
Pois não, Marta. Nem mesmo que se escondem dentro de caixas. :)
Gostei muito Cristina :D
Desta magia em triplicado...adoro :D
:*
:)
Obrigada, Isabel
Ideia muito boa.
Não peças aos deuses o que desejas, não é?
Posso pedir um final mais tortuoso?
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