Currais
O comboio corre na linha do mar. Cerras os olhos e abandonas a cabeça por entre as mãos. Não há silêncio recortado pelo som dos cagarros. O cheiro a mar dilui-se no tabaco que paira junto ao vidro das janelas. Há uma mulher que se senta à tua frente. Uma mulher velha. Que não veste preto. Nem traz um terço entre os dedos curtidos pelo sal . Os mesmos que já levaram uma conta na festa do espírito santo. No tempo em que ainda eram longos. Tão longos que à noite quase tocavam nas luzes do Faial. Cerras os olhos. A tua mãe que reza. Pai nosso que estais no céu. O cinzento do céu que escorre no basalto preto. Lá em baixo, para além dos currais, o mar encrespado bebe-te o ar. Alarga-te a distância. Seja feita a tua vontade. Aqui no céu e na terra. As videiras sob a maresia. O sino que toca. Corres para o moroiço que dá para os currais. Sentas-te com a cabeça presa entre as mãos. Como vais agora. Respiras. O ar é viscoso e sabe a sal. A chuva esmorece por entre os poros negros da pedra. Agora e na hora da nossa morte. Os passos do padre na bagacina. E os sinos que tocam. A tua mãe que chora. Escorre-lhe o verde dos olhos, para o preto do fato. Beija a cruz. Ergues o rosto. A velha à tua frente cruzou as mãos na colo. Suspira. O comboio chega e tu levantas-te. Amém. Pareceu-te ouvi-la sussurrar. Mas é a voz da tua mãe no aeroporto. A voz da ilha que ficou para trás. Seja feita a tua vontade, filho. Amém.
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4 comentários:
'Escorre-lhe o verde dos olhos, para o preto do fato' é uma imagem absolutamente poética. Todas as mães são poemas quando olham para os filhos. Gostei tanto, Cristina :)
Obrigada, Marta :)
Os Açores ficam-nos marcados nos olhos.
bj
Quem diria que os Açores e o Pai Nosso dariam uma bela estória?! ;)
Gostei mt - tou-me consolando...ehehehe
:*
Tive pena de não ter lá ficado mais tempo, acredita. É uma terra que dá boas estórias :))
bjs, Isabel
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